sábado, 15 de junho de 2013

A experiência do sujeito na pós-modernidade


“Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real
O momento embriaga... A alma esquece                    
Que existe no mover-se... Cais, carnal...
Para os botes no cais quem é que desce?
Que importa? Vamos! Tudo é tão real!”
                          - Álvaro de Campos



O período histórico da arte moderna foi caracterizado pelo ciclo das vanguardas artísticas[1]. O próprio sentido bélico do termo já nos permite esboçar as características essenciais desse ciclo: uma vanguarda é a primeira linha de um exército em ordem de batalha ou de marcha. Isso significa que os diversos movimentos artísticos do modernismo (os famigerados “ismos”: impressionismo, expressionismo, cubismo, construtivismo, e entre outros, por exemplo) assumiam, enquanto programa estético-artístico, a tomada da linha frente, posta em marcha rumo a tempos novos e inexplorados, procurando colonizar esses novos terrenos temporais, ditando as formas da arte do futuro, quando não mesmo a própria sociedade do futuro, libertando-se das teias da tradição. O traço estético principal que deu cores a esse imaginário vanguardista foi a maneira pela qual os artistas procuravam, através de suas obras, impregnar a vida de arte, embaralhar vida e arte, estetizar o real, convictos de que tal projeto libertaria os potenciais cognitivos acumulados no ser humano comum para uma fruição estética sem precendentes em grandeza da experiência cotidiana. O imaginário artístico moderno foi, portanto, carregado pela crença nos potenciais transformadores da arte.
            Foi a esse projeto, todavia, que vários críticos de arte e diversos intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, partidários da crença na força transformadora da arte moderna, assistiram ruir melancolicamente. Um novo imaginário surgiu, levantando a preocupação dos críticos. Sem descaminhar pelas peripécias do termo, a pós-modernidade assinala um período de mudança: a arte contemporânea[2] não carrega mais o imaginário transformador desenvolvido pelas vanguardas modernistas. Diversos “sintomas” foram recolhidos nas novas experimentações artísticas que levantavam a questão do adoecimento da experiência estética no mundo contemporaneo[3]. Não são sintomas gratuitos, sinais de uma degeneração interna do modernismo. Trata-se de perguntar então quais são as mudanças na ordem social sobre as quais se fez nascer essa experiência. Não se deve entender a pós-modernidade enquanto falência do projeto moderno consequente de suas próprias contradições internas, mas sim enquanto consequência de uma nova experiência que surgiu enraizada nas novas mudanças da realidade objetiva, causadas pelo desenvolvimento do sistema econômico capitalista no pós-guerra, ao qual Hobsbawn nomeou de “a era de ouro” do capitalismo do breve século XX. Tomamos a pós-modernidade, portanto, como um “conceito de periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica” [4].
            É assim que Fredric Jameson, atento à maneira pela qual essa transformação no modo de produção capitalista, que impregnou a vida com os novos imperativos administrativos da nova ordem mundial e mudou por sua vez a experiência de vida daqueles inseridos nessa malha social, recolhe sintomas para fazer o diagnóstico da pós-modernidade. Voltando-se para o próprio sujeito, ele percebe os novos traços que este apresenta, uma nova sensibilidade inaugurada debaixo da hegemonia do capitalismo multinacional. A perda de consciência histórica, a experiência de uma certa sensação de irrealidade promovida pelo mundo das imagens de diversos meios e a melancolia (depressão) são algumas características (nem todas nomeadas por Jameson, como ainda veremos) do imaginário pós-moderno, que por sua vez se manifestam nas produções artísticas: no hiper-realismo, no cinema de nostalgia, na pop art cada vez mais reafirmando os valores da sociedade de consumo e do amercian way of life, na arquitetura de Las Vegas, nas expressões lúdicas de  livre embaralhamento de signos, etc. A arte moderna, antes subversiva contra a tradição, passou a ser canonizada nos museus e nas universidades, feita a nova inimiga do novo anti-tradicionalismo amante do mundo pop comercial, passa a ser acusada de formas excêntricas de expressão face às novas formas de vida cotidiana surgidas nas condições sociais impulsionadas pelo capitalismo pós-industrial. O objetivo desse trabalho é, em fim, compreender a “especificidade da experiência pós-moderna do espaço e do tempo” e dar cabo de suas principais consequências. Para tanto, farei um traço comparativo entre três teóricos (Fredric Jameson, Jean Baudrillard e Christopher Lasch) sobre este ponto, que lhes é comum.
            Primeiramente, vale indicar quais foram as principais transformações objetivas ocorridas na ordem econômica capitalista, que deram a Jameson a possibilidade de ancorar (o termo é de Perry Anderson) o pós-modernismo na sociedade de consumo. São quatro delas: o desenfreado desenvolvimento da tecnologia (e já adicionamos: o seu predomínio funcionalista essencial no cotidiano, tornando o corpo e o tato sensível obsoletos em diversas situações, e também sua função enquanto produtora de uma experiência acelerada do tempo), tornada maior fonte de lucro; a colonização do setor empresarial pelas corporações multinacionais; o crescimento da especulação financeira internacional; e o desenvolvimento dos modos de comunicação, dando-lhe um poder nunca visto, sobrepondo-se a mídia e “ultrapassando fronteiras”[5]. Nessa situação, a modernização social coloniza todas as instâncias da vida: a cultura torna-se o tecido de nossas vidas. Uma cultura, como tanto insistiu Adorno, explorada pela industria cultural capitalista.
            Acredito que a originalidade da compreensão de Jameson a respeito do espaço pós-moderno e os traços mais característicos da nova sensibilidade que se inaugura a partir da experimentação desse espaço, remete à descrição de sua visita ao Hotel Bonaventure, localizado em Las Vegas. O edifício é um símbolo perfeitamente concreto para mostrar a mudança substancial que o novo capitalismo traz ao espaço do mundo da vida, dentro do qual, uma vez inserido, o individuo vivencia sensações típicas do imaginário pós-moderno. Além disso, o edifício é também, uma obra da arquitetura tipicamente pós-moderna (ressalva sobre as artes críticas), ou seja, não procura mais inserir uma nova linguagem no mundo em que se coloca, questionando-o, mas se propõe a reafirmar as linguagens, os valores e as tendências desse mundo[6]. Vale lembrar, que seu autor (John C. Portman Jr.) é um “artista que é também um capitalista”[7]. O caso exemplar do Bonaventure ganha ainda mais força nesse sentido, pois seu mundo é o mundo do excesso de Las Vegas.
Ainda mais: o sentido dessa construção é simbólico, no sentido imagético da palavra. A relação edifício-mundo, visitante-sujeito, dá a essa obra a realização de seu objetivo de ser um mundo completo em si mesmo. O hotel Bonaventure é a pós-modernidade. O sentido dessa interpretação é baudrillardiano: o hotel não tenta imitar o real, ou ser uma representação à sua imagem e semelhança. Tampouco procura ser uma obra de alguma interpretação estética individual que procura nomear um referente real. Não: procura ser o próprio real, é simulacro. A evocação da fábula de Borges[8] aqui é de perfeito cabimento. Um mapa, que na pretensão de dar uma representação perfeita do Império, acaba por cobrir exatamente todo o seu território; assim também o é o Bonaventure, mas como se o mapa pudesse liquidar seu referente (o mundo), o hotel também liquida o seu: é o modelo de um real sem realidade. É hiper-real, mais real do que o próprio real. Um ambiente virtual que pode ser experimentado com a vivacidade própria da malha urbana. O hotel Bonaventure se apresenta, tal como o museu Beaubourg, como um “monumento à desconexão total, à hiper-realidade e à implosão da cultura” [9]. E não precisamos ficar limitados a somente esse exemplo, pois o mundo contemporâneo está permeado de lugares e situações simulacros. Os parques de diversões, os shoppings centers, os grandes centros de convivência, o mundo da publicidade, o cinema high definition ou 3D, os videogames, e outros.
Imersos nesses espaços, os sujeitos passam a fruir dessas novas noções estéticas. A fronteira entre o real e o virtual desmorona sob o signo do simulacro das imagens pós-modernas. Esses ambientes tendem a sobrecarregar-se de imagens, de convencer o seu publico a mergulhar na irrealidade, substituindo o mundo real, pelo mundo da fantasia, da ficcção, do frenesi consumista. Nesse ritmo frenético, a massa popular corre a esse cenário para celebrar a dissuasão cultural: “as massas precipitam-se para lá não porque salivem por essa cultura de que estariam privadas desde há séculos, mas porque têm pela primeira vez a oportunidade de participar maciçamente nesse imenso trabalho de luto de uma cultura que, no fundo, sempre detestaram” [10]. Como que, por um amor a esse tipo de cenário lúdico, o espectador pudesse se livrar das exigências rigorosas e exaustivas do passado moderno. As reações do espectador oscilam em um clima fúnebre-festivo entre o fascínio e a melancolia. As novas formas de simulação são a realidade. A atenção apreendida por elas se dá sobre a forma de um fascínio que de tal modo estimula os sentidos do sujeito, que ele passa a ignorar todo o real em volta. Um fenomeno analogo ao que acontece com a teoria freudiana da economia libidinal: tira-se energia de um lugar para por no outro. Imerso num presente perpétuo de virtuosidade libidinal, as próprias noções sensoriais do sujeito de percepção dos espaços reais são prejudicadas. Essa nova sensibilidade se dá como um efeito alucinógeno, vertiginoso. Algo se perde nesse processo. “Melancólicos e fascinados, tal é a nossa situação geral” na contemporaneidade: “o fascínio [...] é uma paixão niilista por excelência, é a paixão própria ao modo de desaparecimento [do real]”, enquanto a melancolia “é a tonalidade fundamental [...] dos sistemas atuais de simulação, de programação e de informação”, “é a qualidade inerente ao modo de desaparecimento do sentido”[11]. Em outras palavras: em regime de “pós-modernidade”, o mundo real (aqui entendido enquanto mundo histórico) desaparece diante do fascínio proporcionado pelas novas formas de fruição estética[12].
Esse é um ponto em comum entre Jameson e Baudrillard. O primeiro também se volta para a compreensão do desconcerto espaço-temporal do homem comum inserido nos novos espaços ditos “pós-modernos”. Em sua visita ao Hotel Bonevanture, Jameson faz uma analise do efeito vertiginoso que causa a “livre” movimentação pelo espaço do hotel. Primeiramente, as escadas rolantes e os elevadores, esses “transportadores de pessoas” como diz ele, desempenham papel central para nomear a condução do visitante pelo hotel. Mas isso gera um efeito negativo: o sujeito não necessita mais de suas capacidades de mapeamento do espaço para se auto-determinar nele e livremente se locomover, pelo contrário, ele passa a ser conduzido pelo espaço, o que causa um efeito vertiginoso, desorientador[13]. As “gigantescas estruturas cinéticas” passam elas mesmas a nomear o próprio movimento dentro do hotel: “o passeio da narrativa foi ressaltado, simbolizado, reificado e substituído pela máquina de transporte, que se torna o significante alegórico daquele antigo passeio que não nos é mais permitido fazer por nós mesmos. Essa é uma intensificação dialética da auto-referencialidade de toda cultura moderna, que tende a voltar-se para si mesma e a designar a sua própria produção cultural como o seu conteúdo.”[14] Como o museu Beaubourg, o Bonaventure é simbolizado, reificado, substitui a realidade, se torna um significante alegórico, auto-referente: é simulacro. Ainda dentro do Bonaventure, tende-se a suspeitar de que tudo foi de tal modo arquitetado para ser simplesmente impossível ter qualquer orientação lá dentro. Algo parecido ocorre em um shopping Center: outra construção pós-moderna. Enfim, mergulhado nesses espaços, o sujeito passa a experimentar um desnorteamento de suas capacidades cognitivas de auto-percepçao espaço-temporal. Tudo gira em efeito de vertigem. Um efeito alucinógeno, psicodélico, alimentado pelo excesso de imagens. Tudo para prendê-lo num presente perpétuo, sem referencia ao dito “mundo real”.
Percebendo esse desnorteamento alucinógeno do sujeito, Jameson o à experiência de um esquizofrênico. Ele usa aqui o conceito de Lacan a respeito da esquizofrenia: o esquizofrênico é incapaz de ter uma experiência do tempo em uma continuidade, ficando, portanto, “condenado a um presente perpétuo, como o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra nenhum futuro no horizonte". Mas, por outro lado, sua experiência do presente é muito mais intensa que a nossa. O fascínio opera aqui também: “o mundo surge ante o esquizofrênico com alta intensidade, contendo uma misteriosa sobrecarga afetiva, resplandecendo de energia alucinatória”[15]. Eis o que significa isso, para a nossa compreensão: o sujeito “pós-moderno”, ao experienciar o desconcerto de seus sentidos, perde a noção da realidade, do mundo material histórico: ele se torna incapaz de narrar a experiência do mundo presente em uma linha histórico-temporal continua. O seu futuro morre na linha de um horizonte impossível. Não se torna mais possível experienciar o passado histórico enquanto engendramento de uma realidade passada à realidade presente. O passado fica enclausurado num momento distante, intocável: só é possível se relacionar com ele em espírito de nostalgia. Tudo isso porque, ele (o sujeito) fica preso ao presente perpétuo da fruição das novas formas estéticas fascinantes, presentes nos novos meios de comunicação, nos vídeos em alta definição, no cinema 3D, nos videogames, etc, e também na própria experiência de uma temporalidade acelerada, ou de espaços desnorteantes: aeroportos, museus, hotéis, shoppings Centers, etc.
Há ainda mais um sentido que eu gostaria de dar a todo esse diagnóstico. Notando a auto-referencialidade das artes e do sujeito contemporâneo, é possível dar à “pós-modernidade” mais uma característica: o narcisismo. Voltemos ao Hotel Bonaventure. Jameson, nota como a “pele de vidro” que cobre todo o exterior do edifício, funciona de forma a repelir a “cidade lá fora”, uma força de repulsa, com a qual o Hotel Bonaventure de dissocia “em relação à sua vizinhança”. Lembrando, como notado acima, que o hotel, assim como as outras já citadas obras arquitetônicas da pós-modernidade, “aspira a ser um espaço total, um mundo completo, um tipo de cidade miniatura”[16]. Freud afirma que o narcisismo é um estágio de superestima amorosa do Eu. Tirando o foco de sua energia libidinal do mundo externo e mundando seu sentido para si mesmo, o individuo narcisista se torna indiferente ao mundo que o rodeia, sua própria imagem se torna mais interessante.  O hotel superestima a si mesmo, pretende ser um mundo completo em si só, afasta qualquer necessidade de se referir ao mundo externo, é narcisista.
Reforçamos, porém, que trata-se de elucidar como as novas praticas sociais e estéticas contemporaneas são estimuladas pela ordem economica vigente. Será que é possível identificar sinais de narcisismo na cultura contemporânea? Luciana Chaui Berlinck, em seu livro Melancolia – Rastros de Dor e de Perda, dá as características principais para diagnosticar a sociedade contemporânea como narcisista, das quais eu destaco duas: “o gosto pelo efêmero, e consequentemente, a perda da referencia temporal ao passado e ao futuro, com predominância do presente volátil e inseguro” e “a incapacidade para simbolização e o consequente fascínio pelas imagens e pela nova forma da propaganda e da publicidade”[17]. Duas características que já foram exploradas aqui. Eu arrisco a dizer que a perda do contato com a realidade e ruptura com o passado moderno seja, em certa medida, deliberado. O mundo real, na medida em que o final do século XX se aproximava, lembra Christopher Lasch, se tornara insuportável: “O holocausto nazista, a ameaça de aniquilamento nuclear, o esgotamento de recursos naturais, as predições bem fundamentadas de desastre ecológico preencheram a profecia poética, dando substância histórica concreta ao pesadelo, ou desejo de morte, que os vanguardistas foram os primeiros a exprimir”[18]. Diante de uma realidade tão tortuosa, as pessoas foram levadas a se refugiar nos simulacros para a sobrevivência, a recuar para as suas preocupações sociais. “Viva para si mesmo!”: eis a máxima terapêutica da sociedade contemporânea. O passado se apresenta como um fardo: o projeto de um mundo melhor ruiu, só nos trouxe a desgraça. A geração atual é niilista, no sentido visto acima: apaixonada pelas formas fascinantes de destruição do mundo real. Alimenta-se o gosto pelo efêmero, pelo não durável. “A sociedade narcisista, aquela que incentiva traços narcisistas, desvaloriza culturalmente o passado, não sendo surpreendente que este reapareça sob a forma do revival ou da ‘nostalgia’, como se o passado fosse o mesmo que velhos estilos e velhas modas para sempre terminados e repostos pelo mercado como um bem de consumo”[19].
O peso da vida administrada no capitalismo contemporâneo favorece o empobrecimento da experiência de vida. O mundo do entretenimento lúdico, pop, sobrecarregado de imagens, simulado pela realidade da publicidade serve como uma forma de preencher o vazio que de uma vida que é “algo como a encubadora da violência característica da fantasia do consumo absoluto”[20], como diz Paulo Arantes, a respeito da “metafísica” do BigMac. O sujeito tende cada vez mais a voltar para seus prazeres próprios, a ponto de tornar isso uma neurose. Volta-se a melancolia (que aqui não é entendida num sentido benjameniano, mas clínico: é a depressão). Fechado em seu próprio mundo, desiludido do mundo real, preso num presente perpétuo, as pessoas perdem o interesse pelo mundo exterior, vivem desencantados, suspiram com nostalgia e buscam sanar seus males no consumo compulsivo, no que é efêmero e banal. Como diz Lasch, a sensibilidade contemporanea é terapeutica, só é estimulada por aquilo que pretende sugerir um efeito imediato de remediamento da neurose cotidiana. Em outras palavras: a vida tornou-se insuportável, pobre de experiência, a nova arte, impulsionada pelos interesses comerciais, impregna as livrarias com romances banais com teor de auto-ajuda.
Jameson olha com preocupação para esse cenário decadente. A arte pós-moderna, tal como entendida por ele, não se preocupa, como os antigos vanguardistas, em questionar essa realidade com a intenção de transforma-la. Pelo contrário, faz uma ode a ela, reverencia o pop, rejeita a seriedade do moderno. Jameson insiste na necessidade de “produzir uma relação com o moderno que não signifique nem um apelo nostálgico nem uma denuncia edipiana de suas insuficiências repressivas”[21] para que possamos retomar algum senso histórico, uma perspectiva de futuro. Mas ele é extremamente vago a respeito disso, tal como ele mostra no fim do texto “Pós-modernidade e sociedade de consumo”: “tal questão devemos, todavia, deixar em aberto”. Ao não deixar muito claro como se imagina essa nova relação com o moderno, ele acaba por muitas vezes reafirmar seu diagnóstico[22]. Para Baudrillard, não há volta do simulacro, sua produção é ininterrupta, ele veio para ficar.  O objetivo aqui não é dar uma resposta, uma solução. O fracasso é patente. Talvez seja necessário esperar por outra transformação no âmbito macroestrutural do capital para que seja possível recuperar o fio da meada. Se o capitalismo, na medida em que se desenvolve, desenvolve seus antagonismos, expressos pelas crises, e se estamos numa etapa em que o capitalismo está mais desenvolvido do que na época de Marx ou Lenin, uma crise estrutural é emanente. Alguns, como Nicolas Bourriaud, apelam para o banal, e dizem que a esperança está em comer arroz numa galeria lotada de gente. Outros tentam encontrar o potencial critico em alguns casos particulares arte contemporânea, mas nada com a força e violência de uma vanguarda. O debate é infinitesimal. Meu objetivo, nesse espaço, foi unicamente tentar dar os traços principais da experiência estética contemporânea inaugurada a partir do salto capitalista na metade do século XX.


Nota adicional. Um apêndice, se preferir.

Somos esquizofrênicos. Perdemos a consciência histórica. Tanto é que sempre nos refugiamos nos parâmetros atuais de banalidade de tudo para julgar as consciências de épocas passadas, quando nem tudo era banal, quando ainda havia um projeto, quando o mundo ainda tinha futuro. Pressuposto: o futuro da sociedade de consumo está arruinado. Lembrete: nem sempre o mundo foi assim. O beco sem saída dos frankfurtianos ainda é atual: só a revolução salva, o problema é que ela não vai mais acontecer. Não gosto de me refugiar no grande hotel abismo, portanto, torço por uma crise. É importante não cair no erro do moralismo e lembrar que o problema de hoje não são as pessoas que se tornaram deliberadamente incompetentes para dar uma conjuntura sólida da experiência contemporânea. Em tempos de fim de tudo (fim da arte, fim da história, fim da filosofia - e alguns, mais catastrofomaníancos, adicionariam, como uma conclusão lógica a partir dessas premissas: fim da vida) as teorias megalomaníacos de enraizar a consciência de cada geração na experiência única de seu tempo histórico, construído por um passado, desejando um futuro se tornam as mais sensatas. Walter Benjamin lembra (o que parece ter sido em vão, porque a gente já esqueceu) que a arte se desenvolveu ao longo de um processo histórico, dentro de um modo de produção capitalista, culminando na sua reprodutibilidade técnica. As vanguardas artísticas radicalizam a noção de experiência da realidade, entendida no sentido que adotamos aqui. A experiência única de viver no "auge do capitalismo" na virada do século XIX para o XX. Para nós, já nascidos num mundo velho (eu sou de 94), às vezes esquecemos que o mundo nem sempre foi igual a hoje. Para qualquer um da minha idade, não faz nenhum sentido adotar uma postura vanguardista para ver e perceber o mundo. A banalidade de tudo, já citada. É preciso transportar a consciência para uma determinada época, e entender do que se trata. A aposta real pela sociedade transformada no futuro era o motor sublime da obra de arte. A experiência estética de uma determinada época só deslancha a partir das condições de possibilidade dessa própria experiência. O modernismo não degenerou por falta de forças e nós não adoecemos pelo mesmo motivo. A história tomou novos rumos, o capitalismo tomou conta da vida.
Recentemente, fui tentado numa conversa sobre bossa nova versus rock'n roll, a mostrar como a bossa surge a partir de uma experiência nacional numa época histórica específica, inspirada pelos vestígios de natureza num Brasil em processo de modernização, em espírito de saudosa tristeza, porém bela, a procura de uma identidade nacional, a respeito daquilo que Sergio Buarque de Hollanda diz, que somos "uns desterrados em nossa terra". A resposta que recebi, com uma certa razão foi: "hoje eu me identifico muito mais com uma música dos Ramones do que uma de Tom Jobim". Estava em jogo a birra de escutar música com letra em inglês num país tropical. O que a resposta diz tem toda razão: o ambiente em que nasceu a bossa nova não existe mais. Não há razão para esperar que nasça um Tom Jobim em século XXI, se o mundo que cria as possibilidades de um artista desse porte não existe mais. E tem-se toda a razão ao dizer que devia nascer um novo Tom Jobim, pois se sua arte procurava dar uma consciência de determinada época, então essa época já desenvolveu adiante. Seria correto esperar que alguém nasça para continuar essa obra. Menos ainda somos nós mesmo capazes de experienciar o habitat da bossa nova. A bossa, portanto, velha, hoje paira sem seu referente histórico, exausta pela enésima repetição de "Garota de Ipanema" nas novelas da Globo e nas espetaculares industrialísticas premiações de música brasileira. Tom Jobim: um nome que não diz mais nada. 
As próprias composições brasileiras já percebiam a morte eminente. Tal é o tema, por exemplo, de uma música de Vínicius "Carta ao Tom", na qual ele lamenta ao amigo o turvamento que tomou a cidade do Rio de Janeiro. Numa paródia, Chico Buarque mostra a destruição da natureza promovida pela especulação imobiliária, sob os nomes de Sérgio Dourado. Os poetas ficam condenados à tristeza, diferente daquela tristeza mais bela de antigamente, quando estendido sobre uma esteira de vime, tomando uma cachaça de rolha numa tarde em Itapuã, ficava assistindo o mundo girar. Não é mais possível ver o cantinho de céu e o redentor pela janela. A arte não consegue mais extrair sua força de vestígios de natureza numa cultura que purgou completamente qualquer referencia a um passado pré-moderno. "É meu amigo, só resta uma certeza: é preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor".
Os Ramones, pelo contrário, seu berço de nascimento foi o mundo já completamente capitalizado da década de 70. Nasce, portanto, em meio ao pop, ao kitch, ao grito de revolta da decadência. A experiência descendia, o niilismo por um mundo desrealizado. O mesmo ambiente que vivemos até hoje. Faz sentido, portanto, que as pessoas se identifiquem mais com Ramones do que com a bossa: enquanto o mundo que esta tentava mostrar morreu, aqueles expressam a vida como ela é hoje. A bossa tinha vida, os Ramones nasceram dos escombros da civilização.
A música nunca deixou de expressar a consciência de uma determinada época e a experiência dessa época. Se a música de hoje em dia é insuportável, talvez seja porque a vida hoje está insuportável. Outro dia, na faculdade, eu e um amigo conversávamos sobre a constatação óbvia: "sertanejo universitário é uma merda". Eu disse: "pior que tem pessoas se identificam com essa merda". E a resposta, muito sensata, foi: "mas é porque a vida dessas pessoas é uma merda". Volta o que eu disse em cima, a cultura tornou-se o refugio de um mundo arruinado. A cultura é uma farsa, mãe de outra mentira: "a cultura salva o mundo".  Tipo de coisa que alguma empresa privada usada como slogan para algum festival cultural. Vivemos na Matrix: o mundo real está lá, arruinado, enquanto nos refugiamos num mundo de simulação. Uma refugio que foi quase necessário para suportar a realidade. Pra quem estuda humanas, sabe que a depressão e a solidão é eminente, como uma vez ouvir um professor dizer: "quanto mais a gente estuda humanidades, mais a gente se sente sozinho".
Solução? Eu não tenho. O capitalismo é um modo de produção da contradição. A crise é certa. Num mundo mais capitalista do que nunca, que conseguiu colocar seu dedo sujo em todo cantinho de terra, uma crise total é provável: o capitalismo não se sustenta. Talvez será esse o momento de que a crise completa nos coloque de volta no caminho da humanidade. Amém.






[1] Fabbrini, 2006 – p. 1
[2] A dita “pós-modernindade” não se manifesta somente na arte. Como veremos, ela está enraizada numa mudança social maior. Mas a arte foi o polo fundamental para a compreensão das novas mudanças ocorridas no período.
[3] Fica evidente, portanto, o posicionamento do autor a respeito do tema.
[4] Jameson, ano – p. 2
[5] Perry Anderson, 1999 – p. 66
[6] Jameson, 2006 – p. 31
[7] Ibid – p. 37
[8] Baudrillard, 1991 – p. 7
[9] Ibid ­– p. 83
[10] Ibid – p. 87
[11]Ibid – 197 e 199
[12] Algo análogo ao que experiencia o sonhador Álvaro de Campos, em seu poema “A Tabacaria” (muito embora, com respeito também à epígrafe usada acima, nos atenhamos ao intento modernista do poeta), quando ele diz: “Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;/

Mas acordamos e ele é opaco,/ Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira,(...)”. Isto é, recém-saídos de uma sessão terapeutica de imagens High Definition ou em 3D numa sala high tec de cinema, o público teria que suportar a opacidade de mundo real, com suas cores menos contrastantes e suas situações lacunares e embaraçosas.
[13] Gostaria de propor, em guisa de uma digressão, sobre esse sujeito que, na incapacidade de se auto determinar no espaço urbano, vai ao desencontro de sua sensibilidade, um contraponto: como um beatnik que, no livre caminhar, procura expandir seu potencial e se tornar um agente lírico  em meio ao mundo capitalista. Refiro-me, com “jeitinho brasileiro”, à uma música de Cartola, “Preciso me Encontrar”. O eu-lírico, no caso, desolado, sente necessidade de adotar uma postura errante que lhe permita fruir livremente do ambiente urbano: “Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar. Eu quero nascer, quero viver.” O encontro de si mesmo é a expansão de sua sensibilidade em direção a uma experiência estética da realidad, seu ambiente natal: um renascimento.
[14] Jameson, 2006 – p. 35
[15] Jameson,  1985 – p. 6
[16] Jameson, 2006 – p. 33
[17] Berlinck, 2006 – p. 150
[18] Lasch, 1983 – p. 23
[19] Berlinck, 2006 – p. 151-152
[20] Arantes, 2004 – p. 238
[21] Jameson, 2001, p. 91
[22] Fabbrini, 2006 – p. 16

terça-feira, 4 de junho de 2013

Fljótavík

ficamos aqui deitados de novo banhados de inverno;
nos percebemos aqui.
posso te colocar de cabeça para baixo...
 e quando a maré baixa
você
corre

 mais um pouco.

quando será que você vai alcançar nossa linha de chegada?
parece que o asfalto se move no sentido contrário ao seu.
você não tem pressa nenhuma de chegar
porque você já viu tudo, eu sei.

você já avistou todo o final.



quinta-feira, 11 de abril de 2013

A cultura da contra-cultura



"Se quiser escapar ao domínio do previsível, a relação humana - simbolizada ou substituída por mercadorias, sinalizada por logomarcas - precisa assumir formas extremas ou clandestinas, uma vez que o vínculo social se tornou um produto padronizado".  - Nicolas Bourriaud, Estética Relacional

Ao vestir uma roupa que causa desgosto aos olhos da maioria, adotar um gesto que não condiga com as normas de comportamento das mesas de jantar e assumir por completo uma personalidade, cujas vicissitudes externas são apenas formas de expressões de um eu que procura um efetivo retorno e confronto  negativo com o real, eu tenho a convicção de tudo isso seja matéria de assunto sério, pois se trata de protestar os padrões dominantes impostos, geralmente moralistas, totalizantes, estagnados na perspectiva de uma sociedade mais tolerante e solidaria com as diferenças, padrões que esvaziavam o respeito ao indivíduo. Se de um lado, há essa forma negativa da invenção do estilo de vida, existe outro, positivo, que visa dar um passo a mais no sentido oposto da tradição e propor o novo, apontar formas de viver que sejam diferentes, igualmente aceitáveis e que talvez a sua própria incompreensão fosse sua recompensa, e fornecer também um método para novas ações, cujo campo de atuação seja o próprio eu. Ser incompreendido, adotar posturas pouco aceitas, ser rejeitado, e outros defeitos seriam as virtudes do estilo de vida que se adotaria.

A realidade não poderia ser mais decepcionante. Se vaguearmos por certas ruas de São Paulo, é de se notar que muitas comportam gente que não se assemelham com as outras pessoas do mundo. Mas um segundo olhar, mais próximo e acalmado do êxtase do contraste, permite ver que o novo virou velho, que o feio virou moda, o revolucionário virou tradição e que o errado agora tem lugar certo. É fácil ver como a cultura alternativa virou uma forte expressão da sociedade de consumo. Basta lembrar que são grandes marcas de roupa e produtoras de eventos que lhes fornece o substrato da existência. Se um dia a juventude revogou seu direito de se vestir e ser como quiser, agora é a perfeita hora de abrir uma loja de jaquetas de couro e lhes incentivar. O que já foi a revoga por uma afirmação de uma identidade não deturpada pela roupagem, é agora o look massificado, bem elegante por sinal.

Tiro sarro, mas o fenômeno é extremamente preocupante. O gap que aparece entre o ser e o parecer ser livra as pessoas de qualquer dever moral que corresponda ao seu travestimento. Parece, mas não é. Sob os códigos do que se propunha a ser uma nova tomada de atitude quanto ao modo de viver que gritava pela liberdade de ser seja lá o que se quer ser, a vaidade triunfa como nunca. Como uma frase do filme Edukators: ser revolucionário nunca foi tão fácil, camisas do Che Guevara, adesivos anarquistas, etc. Acompanhada pelo devido marketing a situação foi levada ao próprio colapso: adotar um estilo de vida diferente não quer dizer ser diferente nem procurar novas formas de viver. Pelo contrário, debaixo de muitas camisetas de rock'n roll se esconde a vontade de viver da maneira que melhor condiz com os anos 2010: com muito consumo. Não há nenhum compromisso em ser algo diferente, quando os shopping centers estão cada vez mais impregnados de lojas da nova moda, de modo a ser tão fácil escolher o uniforme da nova maneira de fingir ser, sem que nada de doloroso ou dificultoso surja no meio do caminho da afirmação de uma nova postura, já que esta mesma está começando a ser padronizada e muito bem aceita na sociedade inteira. Não é necessário coragem para o lirismo coagido da balada Augusta.

O que foi um grito de necessidade de declarar um ser que transgrida o exoesqueleto da massa cafona, burguesa e conservadora, é a etiqueta mesmo de uma massa já vazia, ou melhor, esvaziada. Longe de querer ser moralista, não entendo esse fenômeno como incompetência individual. A sociedade de consumo, cujo pai é o capitalismo tardio, impregnou todos os meios da vida. Esse grito foi convertido num sussurro manso e um pouco envergonhado, tão bem espalhado que chega a compor o próprio silêncio da massa. "Quanto é que custa, por favor?". Não mais o "eu sou, eu existo", mais conhecido como "penso, logo existo". Mas somente o eu compro, eu existo, eu visto, eu existo, eu faço, eu existo. E o que era para ser uma identidade unica, cuja personalidade não é composta de fora para dentro, mas de dentro para fora, num alargar da alma, como mostra o pequeno Marcel em seus tempos perdidos, que é de deixar qualquer um chacoalhado com esse movimento da subjetividade que esbarra e embaraça com o mundo concreto, é resumida numa página de Facebook. Personalidade essa, que é apenas um fenômeno, aquilo que aparece, enquanto a coisa em si, à maneira kantiana, se permanece para nós incognoscível, mas pode muito bem ser pensada. A afirmação da personalidade é um "miss direction". Enquanto se apagam nossas verdades mais obscuras, nossos defeitos e nossos "podres", ao mesmo tempo se organizam, escolhem, enfeitam e inventam nossas qualidades. Solidariedade para com os mais pobres e discriminados. Só que no dia da revolução, a lista de presença vai estar vazia.

É de se olhar para esse quadro com bastante melancolia. Perdidos no tempo, nunca o momento certo chega. Quando finalmente vai se realizar o filme da minha vida? Incapazes de viver nosso próprio tempo, que é melhor experienciado quando se arranja tempo para matar tempo (não faz sentido, eu sei!), buscamos o passado obsoleto. A moda retrô desempenha aqui seu papel. A liberdade chegou, mas colocou o homem no deserto sartriano: é-se livre, pode-se ir para onde se quiser, mas não se tem para onde ir. Nessa frustração, o capitalismo é ágil, e numa perpétua novidade estimulada pelo sobrecarregamento de imagens na frágil retina do sujeito contemporâneo, é capaz de satisfazer imediatamente todos os desejos. "Nada é proibido, mas nada é realmente possível". E dando ao público um valor meramente nominal de consumidor, a sociedade do espetáculo, esvazia o sentido do próprio eu, que desamparado, frustra-se e apressa-se a agarrar tudo que lhe faz o gosto e estampar na cor da camiseta. O que seria de mim se as pessoas na rua me confundissem com um cara que gosta de sertanejo?

A cultura da contra-cultura é ela mesma o sistema enraizado. Por suas raízes transitam a seiva de suas próprias pré-concepções (para evitar usar o erro da palavra tão mal entendida "preconceito"). Se a juventude alternativa busca a negação da "tendencia" atual, ela teria então de estabelecer e impor a si a meta revolucionária de fazer o inacreditável: negar a si mesma, e voltar o olhar para o próprio eu. O tempo, ele mesmo, como diz Octavio Paz, se afirma para se negar, se nega para se reinventar. Já não temos mais como recorrer a transcendência, pois Deus está morto. O tempo, imanente, é ele mesmo sua força destruidora, e avança indeciso: se nega e se afirma a toda hora.

A metáfora da estátua de Glauco, usada por Rousseau, ainda conserva atualidade: tal como as intempéries do tempo e do clima desfiguraram tanto a estatua, seja pelo desgaste de sua originalidade (sua natureza, sua essência) seja pela soma de novos componentes (como areia e sujeira) que é quase impossível reconhecer a sua natureza de obra de arte, tal é também o efeito da civilização sobre o homem, que o corrompe, desfigura sua moral, o inflama com vaidade e amor próprio. Mas mais do que atual, essa metáfora faz presente uma perturbação que acredito que não se encontrava em Rousseau, a saber, o medo de que o que caracteriza o ser não é mais sua natureza, mas suas própria desfigurações aparentes, como no caso da estátua de Glauco o que daria nela o estatuto de ser alguma coisa seria a sujeira e o desgaste, sua aparência externas e de que retirados todos agentes que deturpam a natureza desse ser, não reste mais nada.


"Mas o malandro pra valer não espalha [...]"
Chico Buarque






segunda-feira, 1 de abril de 2013

ser passageiro

às vezes só me interessa ser passageiro e ver passar...


 
 "... é difícil ficar bravo quando há tanta beleza no mundo. Às vezes eu sinto que estou vendo tudo de uma vez, e é muito, meu coração se enche como um balão que está prestes a explodir e, então, eu me lembro de relaxar e parar de tentar segurar as emoções que fluem através de mim como chuva, e eu não consigo sentir nada além de gratidão por cada momento da minha vidinha estúpida."

Kevin Spacey como Lester Burnham em "Beleza Americana" (American Beauty, 1999)


(quando você desconhecido passar, vou continuar com minha expressão séria, quase brava. depois que você recém conhecido já tiver passado, vou sorrir, fingindo que é por causa de algo que se passa em meus fones de ouvido. quando você imaginário tiver se instalado, talvez eu continue parando e prestando atenção na letra das musicas de plano de fundo como desculpa.)



 
quantas pessoas amei à primeira e única vista?

quinta-feira, 14 de março de 2013

Chet Baker canta


O disco Chet Baker Sings (1956) é o álbum de maior sucesso comercial do trompetista Chet Baker. As razões são quase óbvias, pelo menos para quem já ouviu o disco (facilmente disponível para download). Chet Baker não só lida muito bem com o trompete, o que é ainda mais notável nos seus álbuns de gênero bem distinto do que desse que eu trato aqui, mas a sua voz também é maravilhosa. Não há como não se encantar  com seu canto acolhedor, terno, suave. Não é a toa que Baker foi grande sucesso entre as mulheres, já que a beleza se apresentava em sua figura quase por completo (a beleza física, a voz bela, o som do trompete e até o seu estilo cool de menino com cara de jogador de futebol americano do time da faculdade mas que na verdade é o malandro que se envolve em brigas com traficantes). Ao mesmo tempo que Baker despertava o romance, seu romance era o jazz e a heroína. Acabou-lhe sendo atribuído várias etiquetas, como cult ou cool. Em Chet Baker Sings é possível ouvi-lo cantar e tocar trompete em uma só música. As músicas são todas clássicos românticos, como My Funny Valentine e tradicionais do swing, das baladas. Já até compararam Chet Baker com Louis Armstrong na época. Um jovem bonito e talentoso cantando clássicos românticos do jazz... não é a toa o sucesso de vendas.


O disco é, vamos dizer, pop. Claro, poderíamos aqui introduzir uma crítica, tendo em vista o potencial artístico que tinha o jazz bebop, por exemplo, que rompia com as formas tradicionais do jazz e do swing, para acrescentar um toque da cultura underground. É fácil imaginar que Sings é o tipo de disco que encantava uma classe média burguesa que se deleitava com os balanços românticos e glamurosos de alguns salões elitizados e que não refletia sobre uma sociedade marginalizada, mas refletia uma sociedade capitalista e consumista da década de 50 dos Estados Unidos. Pode-se pensar nisso e acho que devemos. Mas não é essa a questão quer quero suscitar. Até porque, se for para ouvirmos músicas românticas, que seja então pelo Chet Baker e Louis Armstrong ao invés da música jovem atual que reflete uma sociedade ultraconsumista (se já chamados a década de 50 de consumista), vaidosa e individualista.

Quero apenas refletir sobre a música, talvez despertando o interesse pelo artista, e que isso leve a outros lugares. Falei sobre o encanto de ouvir Chet Baker cantar e tocar numa mesma música. Muitos disseram que é difícil definir se Baker é um trompetista que canta ou cantor que toca trompete. Ainda mais, sua voz e trompete mesclam de forma a parecerem emergir de uma mesma fonte, desconhecida, misteriosamente enterrada debaixo da personalidade errante e contraditória do artista. Mas ainda pareciam em insistir que Chet Baker canta e toca separadamente, que sua voz cessa quando o som do trompete soa, ou que ele não canta enquanto a sua boca estiver colocada sobre o bocal do instrumento.

Penso diferente. Não vejo um Chet Baker que coloca o trompete de lado para soltar a voz, nem um trompetista que pensa que a hora de cantar acabou quando é hora de fazer um solo. Vejo a voz e o trompete numa mescla contínua formando uma só unidade. A voz é uma extensão de suas notas tocadas e vice-versa. O bocal, não um instrumento externo a ele, mas a forma dourada e precisa de seus lábios. Baker não é um trompetista que canta, ou cantor que troca trompete, mas um músico que canta com o trompete e emite solos metálicos com sua voz. Basta ouvir Time After Time para perceber como isso é evidente. Ali não se separa o cantor do trompetista, nem garganta de trompete, nem voz de solo. São tudo uma coisa só. Talvez como as contradições de sua vida sejam uma coisa só. Romance e vício em drogas. Beleza e decadência. Canto e solo de trompete.

Uma coisa é verdade, ambas qualidades parecem provir de uma mesma fonte. E aí é que está a unidade. Cantar e tocar é tão necessário e, por isso, natural, que é impossível evitar um dos dois, ou fazer um valer mais do que o outro, ou mesmo separá-los. Como chamamos um ator de uma ópera? Cantor ou ator? Como separar um dos dois, se para a própria natureza do personagem não existe tal separação, mas apenas uma necessidade de expressão? Talvez possamos buscar essa unidade em várias outras expressões artísticas. Goethe, um poeta ou romancista? Rousseau, poeta, músico, filósofo, romancista...? Só consigo afirmar que eram todos artistas. Não haviam separação entre vida e obra, entre as contradições ou as formas distintas de expressão. Tudo compunha a obra. Quem sabe não era o vício e a decadência de Chet Baker que subia todo dia aos palcos para uma performance incrível? E quem disse que não era o garoto bonito e amável que fugia inseguro ao mundo das drogas? Não digo que gosto de ouvir Chet Baker cantar ou tocar trompete, nem que gosto dele bonito de cabelo arrumado ou acabado e enfiando uma agulha no braço, mas apenas que gosto de ouvir Chet Baker.

"Chet, Chet, Chet… mil vezes Chet! Nunca vi algo tão louco portar tão bem a porra de um trompete alucinado feito um deus no topo da montanha mais alta da imaginação sonora. Seu cool jazz me fazia alucinar, suas frases enlouquecidas me tiravam do cérebro. Um puta mentiroso esse maldito! Um grande beatificado esse cadavérico artista das estrelas. Sua música inundou Nova York de inveja, ninguém acreditava que um branquelo banguela poderia comandar tão bem o ofício da negaiada. Davis até tentou esconder seu espanto, mas ninguém mais do que ele mesmo foi capaz de reverenciar o diabo louro do oeste.
E depois de uma noite incrível de Jazz e whisky fui apresentado ao promissor Chet como um promissor escritor do leste. Estava de passagem pelos arredores de L.A., era uma segunda-feira fodida em que eu e o pessoal não tinha porra nenhuma para fazer e surgiu a idéia de visitar um bar que ficava nos arredores da cidade. Era um porão que abria as portas para o Jazz toda segunda. Acho que era nesse dia por que ninguém iria querer ver esse tipo de coisa acontecendo no fim de semana. Tinha uma galera bacana em Los Angeles que odiava qualquer coisa que vinha dos negros e esse pessoal não tolerava qualquer citação a eles. E nós como éramos loucos por tudo que saia da alma negra, íamos onde ela estivesse.
Pete me pegou pela gola e me levou para um canto onde um pessoal puxava um fumo. A princípio achei que essa era a nossa intenção, mas de repente percebi que ele queria me apresentar ao altão louro e banguela que falava sem parar de seus feitos.
- Hey Chet, esse é Jack, o cara que eu te falei!
- E ai? – Baker estendeu a bagana na minha direção e me ofereceu o baseado. É claro que aceitei na hora e antes de responder o seu cumprimento, mandei a fumaça para o mais profundo do meu corpo e ainda com ela estocado no meu peito respondi:
- Cara, você manda como os negões da costa leste. Tem um pessoal lá que não irá acreditar quando eu falar que vi alguém ao nível do Parker e do Davis.
Acho que ele não se sentiu muito à vontade com a comparação, pois praticamente ignorou o que eu disse e se virou para um outro cara que ali estava. Porém, antes de sair dali, ele me disse que depois queria continuar a nossa conversa. Eu apenas abanei a cabeça e passei o fumo para o próximo. Pete ficou meio envergonhado, mas eu logo acalmei a sua ansiedade e pedi para ele relaxar. Já estava acostumado com essas pretensas estrelas, eu mesmo era uma delas, afinal.
Acho que nunca mais a gente se falou direito, apenas na Europa em 61, mas passei a anunciá-lo por onde for que eu fosse. Acho que sentia uma energia estranha que rolava em mim e que não sei exatamente porque, via que tinha naquele cara. Penso que devia ser o caso de eu ver nele algo que eu nunca pude ser, um branco tocador de jazz.
Ao longo da década de 50, quando Chet chegava a NY, eu fazia questão de levar o pessoal para ouví-lo, mas o meu orgulho nunca me permitiu muita aproximação. Na verdade, tinha medo dele sair de fininho como da outra vez. Acho também que o filho da puta ficou ofendido de eu dizer que ele tocava como os negões. Um mané orgulhoso de uma figa que se achava um deus. E por que não? Talvez fosse mesmo, um daqueles sopros divinos que descem ao inferno para se deprimir e instigar aos simples mortais na mais pura arte das estrelas.

Quando eu já tinha me transformado em um escritor célebre, tive um encontro com o maldito na Europa. Naquela época acho que tanto eu quanto ele estávamos mais a fim de nos enlouquecer do que falar com as pessoas. Assim, numa festa de uma bicha italiana que vivia em Paris tivemos a honra de dividir a mesma agulha e ficarmos soltos por umas horas, investigando cada um a alma do outro. No início havia ainda uma moçada, mas de repente só sobrou o nosso papo alucinado, cada um falando arrastado e desorientado sobre si e também de como as pessoas e a imprensa nos deprimiam. Chegamos a conclusão que o melhor mesmo era entrar cada vez mais para dentro e esquecer que existe algo ai fora. Ficamos ainda mais deprimidos e percebemos que sim, havia algo entre a gente, mas era tão pesado que o melhor seria cada um esquecer o outro, como se esquece do que acontece num porre de vodka."

Jack Kerouac                                                                        
                                




quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Despertar da vigília

Deito-me no fim de um dia que é resultado e continuação da obra humana considerada como a mais sublime, que consiste em livrar o homem de sua bestialidade animal, de torná-lo grande e civilizado, de atarefar-lhe com o esforço da utilidade do trabalho, da família e do conhecimento. Deito-me no fim de um dia na civilização. Deito-me na escuridão ainda vertiginosa da lâmpada recém-apagada, enquanto a escassa luz noturna, da rua e da lua, encontra seu caminho para dentro do meu quarto e para a sombra da minha mobília. Deito-me sobre o travesseiro cientificamente projetado para meu melhor conforto e saúde, e fico ouvindo seus estalos, como se fosse a minha própria orelha que estalasse em alguma infância esquecida. Deito-me para ouvir o silêncio do ruído continuo dos carros janela à fora, o silêncio do ranger dos móveis de madeira do meu quarto, dos passos intrusos dos meus vizinhos que pisoteiam por todo o teto do meu apartamento, do zumbido da televisão desligada. Deito-me no fim de um dia esquecido, que parece nunca ter começado, uma sensação que se prolonga ao próximo despertar, ao próximo adormecer, etc. Deito-me, não numa vida que é atarefada, mas numa grande e enorme tarefa, à qual é permitido às vezes um pouco de vida e descanso. Deito-me depois de mais um dia da comprova impermeável da grandeza das conquistas e obras do homem, de tudo quanto é inovações tecnológicas que me põem em todo lugar a todo momento. Deito-me, como resultado de todas as ferramentas históricas criadas para tentar fazer a humanidade mais feliz e evoluída.

Deito-me, mas não durmo. As piscadelas que dou, longas ou curtas, que duram alguns segundos ou algumas horas, não merecem o nome de sono. Deito-me, mas sou às vezes assaltado por um desnorteio que me coloca num estado mais regressivo e pré-histórico do que o do nosso ancestral primata que enfia o dedo no cu pra cheirar. Deito-me e levanto-me num cansaço que supera a impotência e a burrice do homem das cavernas. Deito-me, mas sou açoitado por pesadelos que me fazem gritar incessantemente pela minha mãe e me fazem mijar nos meus pijamas. Deito-me e sou colocado num estado de alucinação que remonta à minha primeira embriaguez quando, com as pernas imobilizadas e inválidas, eu tentava correr por uma escadaria, sempre pisando em vão, tentando fujir da imagem feminina que vinha para roubar minha inocência e bondade. Deito-me, mas me resta tão pouco da minha existência que eu existo menos do que quem já morreu. Deito-me e tenho a sensação de que nada se move, nem mesmo tudo o que é movimento, nem mesmo o avião que cruza o continente numa noitada só, nem mesmo a Terra e Sol a girar, fazendo nascer os dias, os meses, os anos e as eternidades. Deito-me e sou mais velho do que Deus, mais novo do que o espermatozoide mais lento do bando. Deito-me e meu corpo dói e lateja como se eu fosse um pedreiro ainda de pé jogando tijolos prédio acima. Deito-me e sou vazio; desfaço-me sobre a cama que não reclama e que é muito mais do que eu; de fato, tenho mais história para contar sobre a minha cama do que sobre mim: posso dizer de que madeira ela foi feita, em que ano foi fabricada e por quem, etc. O que posso dizer sobre mim? Qual é a minha história? De que matéria fui feito e por quem?

Antes essas inquietações provocassem em mim o maravilhamento que fez nascer a primeira metafísica, do que me colocassem em desencanto e desinteresse para transcender minha vida e, portanto, cria-lá. Eu me deito sem metafísica, sem sentido nem maravilha, mas somente me deito...


13/02/2013