“Mais
depressa... Sigamos... Hoje é o real
O
momento embriaga... A alma esquece
Que
existe no mover-se... Cais, carnal...
Para
os botes no cais quem é que desce?
Que
importa? Vamos! Tudo é tão real!”
-
Álvaro de Campos
O período histórico da arte moderna
foi caracterizado pelo ciclo das vanguardas artísticas[1]. O
próprio sentido bélico do termo já nos permite esboçar as características essenciais
desse ciclo: uma vanguarda é a primeira linha de um exército em ordem de
batalha ou de marcha. Isso significa que os diversos movimentos artísticos do
modernismo (os famigerados “ismos”: impressionismo, expressionismo, cubismo, construtivismo,
e entre outros, por exemplo) assumiam, enquanto programa estético-artístico, a
tomada da linha frente, posta em marcha rumo a tempos novos e inexplorados, procurando
colonizar esses novos terrenos temporais, ditando as formas da arte do futuro,
quando não mesmo a própria sociedade do futuro, libertando-se das teias da
tradição. O traço estético principal que deu cores a esse imaginário
vanguardista foi a maneira pela qual os artistas procuravam, através de suas
obras, impregnar a vida de arte, embaralhar vida e arte, estetizar o real,
convictos de que tal projeto libertaria os potenciais cognitivos acumulados no
ser humano comum para uma fruição estética sem precendentes em grandeza da
experiência cotidiana. O imaginário artístico moderno foi, portanto, carregado
pela crença nos potenciais transformadores da arte.
Foi
a esse projeto, todavia, que vários críticos de arte e diversos intelectuais de
diferentes áreas do conhecimento, partidários da crença na força transformadora
da arte moderna, assistiram ruir melancolicamente. Um novo imaginário surgiu,
levantando a preocupação dos críticos. Sem descaminhar pelas peripécias do
termo, a pós-modernidade assinala um período de mudança: a arte contemporânea[2]
não carrega mais o imaginário transformador desenvolvido pelas vanguardas
modernistas. Diversos “sintomas” foram recolhidos nas novas experimentações
artísticas que levantavam a questão do adoecimento da experiência estética no
mundo contemporaneo[3].
Não são sintomas gratuitos, sinais de uma degeneração interna do modernismo.
Trata-se de perguntar então quais são as mudanças na ordem social sobre as
quais se fez nascer essa experiência. Não se deve entender a pós-modernidade enquanto
falência do projeto moderno consequente de suas próprias contradições internas,
mas sim enquanto consequência de uma nova experiência que surgiu enraizada nas
novas mudanças da realidade objetiva, causadas pelo desenvolvimento do sistema
econômico capitalista no pós-guerra, ao qual Hobsbawn nomeou de “a era de ouro”
do capitalismo do breve século XX. Tomamos a pós-modernidade, portanto, como um
“conceito de periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de
novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida
social e de uma nova ordem econômica” [4].
É
assim que Fredric Jameson, atento à maneira pela qual essa transformação no
modo de produção capitalista, que impregnou a vida com os novos imperativos
administrativos da nova ordem mundial e mudou por sua vez a experiência de vida
daqueles inseridos nessa malha social, recolhe sintomas para fazer o
diagnóstico da pós-modernidade. Voltando-se para o próprio sujeito, ele percebe
os novos traços que este apresenta, uma nova sensibilidade inaugurada debaixo
da hegemonia do capitalismo multinacional. A perda de consciência histórica, a
experiência de uma certa sensação de irrealidade promovida pelo mundo das
imagens de diversos meios e a melancolia (depressão) são algumas
características (nem todas nomeadas por Jameson, como ainda veremos) do
imaginário pós-moderno, que por sua vez se manifestam nas produções artísticas:
no hiper-realismo, no cinema de nostalgia, na pop art cada vez mais reafirmando os valores da sociedade de
consumo e do amercian way of life, na
arquitetura de Las Vegas, nas expressões lúdicas de livre embaralhamento de signos, etc. A arte
moderna, antes subversiva contra a tradição, passou a ser canonizada nos museus
e nas universidades, feita a nova inimiga do novo anti-tradicionalismo amante
do mundo pop comercial, passa a ser acusada de formas excêntricas de expressão
face às novas formas de vida cotidiana surgidas nas condições sociais
impulsionadas pelo capitalismo pós-industrial. O objetivo desse trabalho é, em
fim, compreender a “especificidade da experiência pós-moderna do espaço e do
tempo” e dar cabo de suas principais consequências. Para tanto, farei um traço
comparativo entre três teóricos (Fredric Jameson, Jean Baudrillard e
Christopher Lasch) sobre este ponto, que lhes é comum.
Primeiramente,
vale indicar quais foram as principais transformações objetivas ocorridas na
ordem econômica capitalista, que deram a Jameson a possibilidade de ancorar (o
termo é de Perry Anderson) o pós-modernismo na sociedade de consumo. São quatro
delas: o desenfreado desenvolvimento da tecnologia (e já adicionamos: o seu
predomínio funcionalista essencial no cotidiano, tornando o corpo e o tato
sensível obsoletos em diversas situações, e também sua função enquanto
produtora de uma experiência acelerada do tempo), tornada maior fonte de lucro;
a colonização do setor empresarial pelas corporações multinacionais; o
crescimento da especulação financeira internacional; e o desenvolvimento dos
modos de comunicação, dando-lhe um poder nunca visto, sobrepondo-se a mídia e
“ultrapassando fronteiras”[5].
Nessa situação, a modernização social coloniza todas as instâncias da vida: a
cultura torna-se o tecido de nossas vidas. Uma cultura, como tanto insistiu
Adorno, explorada pela industria cultural capitalista.
Acredito
que a originalidade da compreensão de Jameson a respeito do espaço pós-moderno
e os traços mais característicos da nova sensibilidade que se inaugura a partir
da experimentação desse espaço, remete à descrição de sua visita ao Hotel Bonaventure, localizado em Las
Vegas. O edifício é um símbolo perfeitamente concreto para mostrar a mudança
substancial que o novo capitalismo traz ao espaço do mundo da vida, dentro do
qual, uma vez inserido, o individuo vivencia sensações típicas do imaginário
pós-moderno. Além disso, o edifício é também, uma obra da arquitetura
tipicamente pós-moderna (ressalva sobre as artes críticas), ou seja, não
procura mais inserir uma nova linguagem no mundo em que se coloca,
questionando-o, mas se propõe a reafirmar as linguagens, os valores e as
tendências desse mundo[6].
Vale lembrar, que seu autor (John C. Portman Jr.) é um “artista que é também um
capitalista”[7].
O caso exemplar do Bonaventure ganha ainda mais força nesse sentido, pois seu
mundo é o mundo do excesso de Las Vegas.
Ainda
mais: o sentido dessa construção é simbólico, no sentido imagético da palavra.
A relação edifício-mundo, visitante-sujeito, dá a essa obra a realização de seu
objetivo de ser um mundo completo em si mesmo. O hotel Bonaventure é a pós-modernidade. O sentido dessa
interpretação é baudrillardiano: o hotel não tenta imitar o real, ou ser uma
representação à sua imagem e semelhança. Tampouco procura ser uma obra de alguma
interpretação estética individual que procura nomear um referente real. Não:
procura ser o próprio real, é simulacro. A evocação da fábula de Borges[8]
aqui é de perfeito cabimento. Um mapa, que na pretensão de dar uma
representação perfeita do Império, acaba por cobrir exatamente todo o seu
território; assim também o é o Bonaventure, mas como se o mapa pudesse liquidar
seu referente (o mundo), o hotel também liquida o seu: é o modelo de um real
sem realidade. É hiper-real, mais real do que o próprio real. Um ambiente
virtual que pode ser experimentado com a vivacidade própria da malha urbana. O
hotel Bonaventure se apresenta, tal como o museu Beaubourg, como um “monumento
à desconexão total, à hiper-realidade e à implosão da cultura” [9]. E
não precisamos ficar limitados a somente esse exemplo, pois o mundo
contemporâneo está permeado de lugares e situações simulacros. Os parques de
diversões, os shoppings centers, os grandes centros de convivência, o mundo da
publicidade, o cinema high definition
ou 3D, os videogames, e outros.
Imersos
nesses espaços, os sujeitos passam a fruir dessas novas noções estéticas. A
fronteira entre o real e o virtual desmorona sob o signo do simulacro das
imagens pós-modernas. Esses ambientes tendem a sobrecarregar-se de imagens, de
convencer o seu publico a mergulhar na irrealidade, substituindo o mundo real,
pelo mundo da fantasia, da ficcção, do frenesi consumista. Nesse ritmo
frenético, a massa popular corre a esse cenário para celebrar a dissuasão
cultural: “as massas precipitam-se para lá não porque salivem por essa cultura
de que estariam privadas desde há séculos, mas porque têm pela primeira vez a
oportunidade de participar maciçamente nesse imenso trabalho de luto de uma
cultura que, no fundo, sempre detestaram” [10].
Como que, por um amor a esse tipo de cenário lúdico, o espectador pudesse se
livrar das exigências rigorosas e exaustivas do passado moderno. As reações do
espectador oscilam em um clima fúnebre-festivo entre o fascínio e a melancolia.
As novas formas de simulação são a realidade. A atenção apreendida por elas se
dá sobre a forma de um fascínio que de tal modo estimula os sentidos do
sujeito, que ele passa a ignorar todo o real em volta. Um fenomeno analogo ao
que acontece com a teoria freudiana da economia libidinal: tira-se energia de
um lugar para por no outro. Imerso num presente perpétuo de virtuosidade
libidinal, as próprias noções sensoriais do sujeito de percepção dos espaços
reais são prejudicadas. Essa nova sensibilidade se dá como um efeito
alucinógeno, vertiginoso. Algo se perde nesse processo. “Melancólicos e
fascinados, tal é a nossa situação geral” na contemporaneidade: “o fascínio
[...] é uma paixão niilista por excelência, é a paixão própria ao modo de
desaparecimento [do real]”, enquanto a melancolia “é a tonalidade fundamental
[...] dos sistemas atuais de simulação, de programação e de informação”, “é a
qualidade inerente ao modo de desaparecimento do sentido”[11].
Em outras palavras: em regime de “pós-modernidade”, o mundo real (aqui
entendido enquanto mundo histórico) desaparece diante do fascínio proporcionado
pelas novas formas de fruição estética[12].
Esse
é um ponto em comum entre Jameson e Baudrillard. O primeiro também se volta
para a compreensão do desconcerto espaço-temporal do homem comum inserido nos
novos espaços ditos “pós-modernos”. Em sua visita ao Hotel Bonevanture, Jameson
faz uma analise do efeito vertiginoso que causa a “livre” movimentação pelo
espaço do hotel. Primeiramente, as escadas rolantes e os elevadores, esses
“transportadores de pessoas” como diz ele, desempenham papel central para nomear
a condução do visitante pelo hotel. Mas isso gera um efeito negativo: o sujeito
não necessita mais de suas capacidades de mapeamento do espaço para se
auto-determinar nele e livremente se locomover, pelo contrário, ele passa a ser
conduzido pelo espaço, o que causa um efeito vertiginoso, desorientador[13].
As “gigantescas
estruturas cinéticas” passam elas mesmas a nomear o próprio movimento dentro do
hotel: “o passeio da narrativa foi ressaltado, simbolizado, reificado e
substituído pela máquina de transporte, que se torna o significante alegórico
daquele antigo passeio que não nos é mais permitido fazer por nós mesmos. Essa
é uma intensificação dialética da auto-referencialidade de toda cultura moderna,
que tende a voltar-se para si mesma e a designar a sua própria produção
cultural como o seu conteúdo.”[14]
Como o museu Beaubourg, o Bonaventure é simbolizado, reificado, substitui a
realidade, se torna um significante alegórico, auto-referente: é simulacro.
Ainda dentro do Bonaventure, tende-se a suspeitar de que tudo foi de tal modo
arquitetado para ser simplesmente impossível ter qualquer orientação lá dentro.
Algo parecido ocorre em um shopping Center: outra construção pós-moderna.
Enfim, mergulhado nesses espaços, o sujeito passa a experimentar um
desnorteamento de suas capacidades cognitivas de auto-percepçao espaço-temporal.
Tudo gira em efeito de vertigem. Um efeito alucinógeno, psicodélico, alimentado
pelo excesso de imagens. Tudo para prendê-lo num presente perpétuo, sem
referencia ao dito “mundo real”.
Percebendo esse
desnorteamento alucinógeno do sujeito, Jameson o à experiência de um
esquizofrênico. Ele usa aqui o conceito de Lacan a respeito da esquizofrenia: o
esquizofrênico é incapaz de ter uma experiência do tempo em uma continuidade,
ficando, portanto, “condenado a um presente perpétuo, como o qual os diversos
momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra
nenhum futuro no horizonte". Mas, por outro lado, sua experiência do
presente é muito mais intensa que a nossa. O fascínio opera aqui também: “o
mundo surge ante o esquizofrênico com alta intensidade, contendo uma misteriosa
sobrecarga afetiva, resplandecendo de energia alucinatória”[15]. Eis
o que significa isso, para a nossa compreensão: o sujeito “pós-moderno”, ao
experienciar o desconcerto de seus sentidos, perde a noção da realidade, do
mundo material histórico: ele se torna incapaz de narrar a experiência do mundo
presente em uma linha histórico-temporal continua. O seu futuro morre na linha
de um horizonte impossível. Não se torna mais possível experienciar o passado
histórico enquanto engendramento de uma realidade passada à realidade presente.
O passado fica enclausurado num momento distante, intocável: só é possível se
relacionar com ele em espírito de nostalgia. Tudo isso porque, ele (o sujeito)
fica preso ao presente perpétuo da fruição das novas formas estéticas
fascinantes, presentes nos novos meios de comunicação, nos vídeos em alta
definição, no cinema 3D, nos videogames, etc, e também na própria experiência
de uma temporalidade acelerada, ou de espaços desnorteantes: aeroportos,
museus, hotéis, shoppings Centers, etc.
Há ainda mais um sentido que
eu gostaria de dar a todo esse diagnóstico. Notando a auto-referencialidade das
artes e do sujeito contemporâneo, é possível dar à “pós-modernidade” mais uma
característica: o narcisismo. Voltemos ao Hotel Bonaventure. Jameson, nota como
a “pele de vidro” que cobre todo o exterior do edifício, funciona de forma a
repelir a “cidade lá fora”, uma força de repulsa, com a qual o Hotel
Bonaventure de dissocia “em relação à sua vizinhança”. Lembrando, como notado
acima, que o hotel, assim como as outras já citadas obras arquitetônicas da
pós-modernidade, “aspira a ser um espaço total, um mundo completo, um tipo de
cidade miniatura”[16].
Freud afirma que o narcisismo é um estágio de superestima amorosa do Eu.
Tirando o foco de sua energia libidinal do mundo externo e mundando seu sentido
para si mesmo, o individuo narcisista se torna indiferente ao mundo que o
rodeia, sua própria imagem se torna mais interessante. O hotel superestima a si mesmo, pretende ser
um mundo completo em si só, afasta qualquer necessidade de se referir ao mundo
externo, é narcisista.
Reforçamos, porém, que
trata-se de elucidar como as novas praticas sociais e estéticas contemporaneas
são estimuladas pela ordem economica vigente. Será que é possível identificar
sinais de narcisismo na cultura contemporânea? Luciana Chaui Berlinck, em seu
livro Melancolia – Rastros de Dor e de
Perda, dá as características principais para diagnosticar a sociedade
contemporânea como narcisista, das quais eu destaco duas: “o gosto pelo
efêmero, e consequentemente, a perda da referencia temporal ao passado e ao
futuro, com predominância do presente volátil e inseguro” e “a incapacidade
para simbolização e o consequente fascínio pelas imagens e pela nova forma da
propaganda e da publicidade”[17].
Duas características que já foram exploradas aqui. Eu arrisco a dizer que a perda
do contato com a realidade e ruptura com o passado moderno seja, em certa
medida, deliberado. O mundo real, na medida em que o final do século XX se
aproximava, lembra Christopher Lasch, se tornara insuportável: “O holocausto
nazista, a ameaça de aniquilamento nuclear, o esgotamento de recursos naturais,
as predições bem fundamentadas de desastre ecológico preencheram a profecia
poética, dando substância histórica concreta ao pesadelo, ou desejo de morte,
que os vanguardistas foram os primeiros a exprimir”[18].
Diante de uma realidade tão tortuosa, as pessoas foram levadas a se refugiar
nos simulacros para a sobrevivência, a recuar para as suas preocupações
sociais. “Viva para si mesmo!”: eis a máxima terapêutica da sociedade
contemporânea. O passado se apresenta como um fardo: o projeto de um mundo
melhor ruiu, só nos trouxe a desgraça. A geração atual é niilista, no sentido
visto acima: apaixonada pelas formas fascinantes de destruição do mundo real.
Alimenta-se o gosto pelo efêmero, pelo não durável. “A sociedade narcisista,
aquela que incentiva traços narcisistas, desvaloriza culturalmente o passado,
não sendo surpreendente que este reapareça sob a forma do revival ou da ‘nostalgia’, como se o passado fosse o mesmo que
velhos estilos e velhas modas para sempre terminados e repostos pelo mercado
como um bem de consumo”[19].
O peso da vida administrada
no capitalismo contemporâneo favorece o empobrecimento da experiência de vida.
O mundo do entretenimento lúdico, pop, sobrecarregado de imagens, simulado pela
realidade da publicidade serve como uma forma de preencher o vazio que de uma
vida que é “algo como a encubadora da violência característica da fantasia do
consumo absoluto”[20],
como diz Paulo Arantes, a respeito da “metafísica” do BigMac. O sujeito tende cada
vez mais a voltar para seus prazeres próprios, a ponto de tornar isso uma
neurose. Volta-se a melancolia (que aqui não é entendida num sentido
benjameniano, mas clínico: é a depressão). Fechado em seu próprio mundo,
desiludido do mundo real, preso num presente perpétuo, as pessoas perdem o
interesse pelo mundo exterior, vivem desencantados, suspiram com nostalgia e
buscam sanar seus males no consumo compulsivo, no que é efêmero e banal. Como
diz Lasch, a sensibilidade contemporanea é terapeutica, só é estimulada por
aquilo que pretende sugerir um efeito imediato de remediamento da neurose
cotidiana. Em outras palavras: a vida tornou-se insuportável, pobre de
experiência, a nova arte, impulsionada pelos interesses comerciais, impregna as
livrarias com romances banais com teor de auto-ajuda.
Jameson olha com preocupação
para esse cenário decadente. A arte pós-moderna, tal como entendida por ele,
não se preocupa, como os antigos vanguardistas, em questionar essa realidade
com a intenção de transforma-la. Pelo contrário, faz uma ode a ela, reverencia
o pop, rejeita a seriedade do moderno. Jameson insiste na necessidade de
“produzir uma relação com o moderno que não signifique nem um apelo nostálgico
nem uma denuncia edipiana de suas insuficiências repressivas”[21]
para que possamos retomar algum senso histórico, uma perspectiva de futuro. Mas
ele é extremamente vago a respeito disso, tal como ele mostra no fim do texto
“Pós-modernidade e sociedade de consumo”: “tal questão devemos, todavia, deixar
em aberto”. Ao não deixar muito claro como se imagina essa nova relação com o
moderno, ele acaba por muitas vezes reafirmar seu diagnóstico[22].
Para Baudrillard, não há volta do simulacro, sua produção é ininterrupta, ele
veio para ficar. O objetivo aqui não é
dar uma resposta, uma solução. O fracasso é patente. Talvez seja necessário
esperar por outra transformação no âmbito macroestrutural do capital para que
seja possível recuperar o fio da meada. Se o capitalismo, na medida em que se
desenvolve, desenvolve seus antagonismos, expressos pelas crises, e se estamos
numa etapa em que o capitalismo está mais desenvolvido do que na época de Marx
ou Lenin, uma crise estrutural é emanente. Alguns, como Nicolas Bourriaud,
apelam para o banal, e dizem que a esperança está em comer arroz numa galeria
lotada de gente. Outros tentam encontrar o potencial critico em alguns casos
particulares arte contemporânea, mas nada com a força e violência de uma
vanguarda. O debate é infinitesimal. Meu objetivo, nesse espaço, foi unicamente
tentar dar os traços principais da experiência estética contemporânea
inaugurada a partir do salto capitalista na metade do século XX.
Nota adicional. Um apêndice, se preferir.
Somos esquizofrênicos. Perdemos a consciência histórica. Tanto é que sempre nos refugiamos nos parâmetros atuais de banalidade de tudo para julgar as consciências de épocas passadas, quando nem tudo era banal, quando ainda havia um projeto, quando o mundo ainda tinha futuro. Pressuposto: o futuro da sociedade de consumo está arruinado. Lembrete: nem sempre o mundo foi assim. O beco sem saída dos frankfurtianos ainda é atual: só a revolução salva, o problema é que ela não vai mais acontecer. Não gosto de me refugiar no grande hotel abismo, portanto, torço por uma crise. É importante não cair no erro do moralismo e lembrar que o problema de hoje não são as pessoas que se tornaram deliberadamente incompetentes para dar uma conjuntura sólida da experiência contemporânea. Em tempos de fim de tudo (fim da arte, fim da história, fim da filosofia - e alguns, mais catastrofomaníancos, adicionariam, como uma conclusão lógica a partir dessas premissas: fim da vida) as teorias megalomaníacos de enraizar a consciência de cada geração na experiência única de seu tempo histórico, construído por um passado, desejando um futuro se tornam as mais sensatas. Walter Benjamin lembra (o que parece ter sido em vão, porque a gente já esqueceu) que a arte se desenvolveu ao longo de um processo histórico, dentro de um modo de produção capitalista, culminando na sua reprodutibilidade técnica. As vanguardas artísticas radicalizam a noção de experiência da realidade, entendida no sentido que adotamos aqui. A experiência única de viver no "auge do capitalismo" na virada do século XIX para o XX. Para nós, já nascidos num mundo velho (eu sou de 94), às vezes esquecemos que o mundo nem sempre foi igual a hoje. Para qualquer um da minha idade, não faz nenhum sentido adotar uma postura vanguardista para ver e perceber o mundo. A banalidade de tudo, já citada. É preciso transportar a consciência para uma determinada época, e entender do que se trata. A aposta real pela sociedade transformada no futuro era o motor sublime da obra de arte. A experiência estética de uma determinada época só deslancha a partir das condições de possibilidade dessa própria experiência. O modernismo não degenerou por falta de forças e nós não adoecemos pelo mesmo motivo. A história tomou novos rumos, o capitalismo tomou conta da vida.
Recentemente, fui tentado numa conversa sobre bossa nova versus rock'n roll, a mostrar como a bossa surge a partir de uma experiência nacional numa época histórica específica, inspirada pelos vestígios de natureza num Brasil em processo de modernização, em espírito de saudosa tristeza, porém bela, a procura de uma identidade nacional, a respeito daquilo que Sergio Buarque de Hollanda diz, que somos "uns desterrados em nossa terra". A resposta que recebi, com uma certa razão foi: "hoje eu me identifico muito mais com uma música dos Ramones do que uma de Tom Jobim". Estava em jogo a birra de escutar música com letra em inglês num país tropical. O que a resposta diz tem toda razão: o ambiente em que nasceu a bossa nova não existe mais. Não há razão para esperar que nasça um Tom Jobim em século XXI, se o mundo que cria as possibilidades de um artista desse porte não existe mais. E tem-se toda a razão ao dizer que devia nascer um novo Tom Jobim, pois se sua arte procurava dar uma consciência de determinada época, então essa época já desenvolveu adiante. Seria correto esperar que alguém nasça para continuar essa obra. Menos ainda somos nós mesmo capazes de experienciar o habitat da bossa nova. A bossa, portanto, velha, hoje paira sem seu referente histórico, exausta pela enésima repetição de "Garota de Ipanema" nas novelas da Globo e nas espetaculares industrialísticas premiações de música brasileira. Tom Jobim: um nome que não diz mais nada.
As próprias composições brasileiras já percebiam a morte eminente. Tal é o tema, por exemplo, de uma música de Vínicius "Carta ao Tom", na qual ele lamenta ao amigo o turvamento que tomou a cidade do Rio de Janeiro. Numa paródia, Chico Buarque mostra a destruição da natureza promovida pela especulação imobiliária, sob os nomes de Sérgio Dourado. Os poetas ficam condenados à tristeza, diferente daquela tristeza mais bela de antigamente, quando estendido sobre uma esteira de vime, tomando uma cachaça de rolha numa tarde em Itapuã, ficava assistindo o mundo girar. Não é mais possível ver o cantinho de céu e o redentor pela janela. A arte não consegue mais extrair sua força de vestígios de natureza numa cultura que purgou completamente qualquer referencia a um passado pré-moderno. "É meu amigo, só resta uma certeza: é preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor".
Os Ramones, pelo contrário, seu berço de nascimento foi o mundo já completamente capitalizado da década de 70. Nasce, portanto, em meio ao pop, ao kitch, ao grito de revolta da decadência. A experiência descendia, o niilismo por um mundo desrealizado. O mesmo ambiente que vivemos até hoje. Faz sentido, portanto, que as pessoas se identifiquem mais com Ramones do que com a bossa: enquanto o mundo que esta tentava mostrar morreu, aqueles expressam a vida como ela é hoje. A bossa tinha vida, os Ramones nasceram dos escombros da civilização.
A música nunca deixou de expressar a consciência de uma determinada época e a experiência dessa época. Se a música de hoje em dia é insuportável, talvez seja porque a vida hoje está insuportável. Outro dia, na faculdade, eu e um amigo conversávamos sobre a constatação óbvia: "sertanejo universitário é uma merda". Eu disse: "pior que tem pessoas se identificam com essa merda". E a resposta, muito sensata, foi: "mas é porque a vida dessas pessoas é uma merda". Volta o que eu disse em cima, a cultura tornou-se o refugio de um mundo arruinado. A cultura é uma farsa, mãe de outra mentira: "a cultura salva o mundo". Tipo de coisa que alguma empresa privada usada como slogan para algum festival cultural. Vivemos na Matrix: o mundo real está lá, arruinado, enquanto nos refugiamos num mundo de simulação. Uma refugio que foi quase necessário para suportar a realidade. Pra quem estuda humanas, sabe que a depressão e a solidão é eminente, como uma vez ouvir um professor dizer: "quanto mais a gente estuda humanidades, mais a gente se sente sozinho".
Solução? Eu não tenho. O capitalismo é um modo de produção da contradição. A crise é certa. Num mundo mais capitalista do que nunca, que conseguiu colocar seu dedo sujo em todo cantinho de terra, uma crise total é provável: o capitalismo não se sustenta. Talvez será esse o momento de que a crise completa nos coloque de volta no caminho da humanidade. Amém.
As próprias composições brasileiras já percebiam a morte eminente. Tal é o tema, por exemplo, de uma música de Vínicius "Carta ao Tom", na qual ele lamenta ao amigo o turvamento que tomou a cidade do Rio de Janeiro. Numa paródia, Chico Buarque mostra a destruição da natureza promovida pela especulação imobiliária, sob os nomes de Sérgio Dourado. Os poetas ficam condenados à tristeza, diferente daquela tristeza mais bela de antigamente, quando estendido sobre uma esteira de vime, tomando uma cachaça de rolha numa tarde em Itapuã, ficava assistindo o mundo girar. Não é mais possível ver o cantinho de céu e o redentor pela janela. A arte não consegue mais extrair sua força de vestígios de natureza numa cultura que purgou completamente qualquer referencia a um passado pré-moderno. "É meu amigo, só resta uma certeza: é preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor".
Os Ramones, pelo contrário, seu berço de nascimento foi o mundo já completamente capitalizado da década de 70. Nasce, portanto, em meio ao pop, ao kitch, ao grito de revolta da decadência. A experiência descendia, o niilismo por um mundo desrealizado. O mesmo ambiente que vivemos até hoje. Faz sentido, portanto, que as pessoas se identifiquem mais com Ramones do que com a bossa: enquanto o mundo que esta tentava mostrar morreu, aqueles expressam a vida como ela é hoje. A bossa tinha vida, os Ramones nasceram dos escombros da civilização.
A música nunca deixou de expressar a consciência de uma determinada época e a experiência dessa época. Se a música de hoje em dia é insuportável, talvez seja porque a vida hoje está insuportável. Outro dia, na faculdade, eu e um amigo conversávamos sobre a constatação óbvia: "sertanejo universitário é uma merda". Eu disse: "pior que tem pessoas se identificam com essa merda". E a resposta, muito sensata, foi: "mas é porque a vida dessas pessoas é uma merda". Volta o que eu disse em cima, a cultura tornou-se o refugio de um mundo arruinado. A cultura é uma farsa, mãe de outra mentira: "a cultura salva o mundo". Tipo de coisa que alguma empresa privada usada como slogan para algum festival cultural. Vivemos na Matrix: o mundo real está lá, arruinado, enquanto nos refugiamos num mundo de simulação. Uma refugio que foi quase necessário para suportar a realidade. Pra quem estuda humanas, sabe que a depressão e a solidão é eminente, como uma vez ouvir um professor dizer: "quanto mais a gente estuda humanidades, mais a gente se sente sozinho".
Solução? Eu não tenho. O capitalismo é um modo de produção da contradição. A crise é certa. Num mundo mais capitalista do que nunca, que conseguiu colocar seu dedo sujo em todo cantinho de terra, uma crise total é provável: o capitalismo não se sustenta. Talvez será esse o momento de que a crise completa nos coloque de volta no caminho da humanidade. Amém.
[1] Fabbrini, 2006 – p. 1
[2] A dita “pós-modernindade” não se manifesta somente na arte. Como
veremos, ela está enraizada numa mudança social maior. Mas a arte foi o polo fundamental
para a compreensão das novas mudanças ocorridas no período.
[3] Fica evidente, portanto, o posicionamento do autor a respeito do
tema.
[4] Jameson, ano – p. 2
[5] Perry Anderson, 1999 – p. 66
[7] Ibid – p. 37
[11]Ibid – 197 e 199
[12] Algo análogo ao que experiencia o sonhador Álvaro de Campos, em seu
poema “A Tabacaria” (muito embora, com respeito também à epígrafe usada acima,
nos atenhamos ao intento modernista do poeta), quando ele diz: “Conquistamos todo o mundo antes de
nos levantar da cama;/
Mas
acordamos e ele é opaco,/ Levantamo-nos
e ele é alheio, Saímos de
casa e ele é a terra inteira,(...)”. Isto é, recém-saídos de uma sessão
terapeutica de imagens High Definition ou
em 3D numa sala high tec de cinema, o
público teria que suportar a opacidade de mundo real, com suas cores menos
contrastantes e suas situações lacunares e embaraçosas.
[13] Gostaria de propor, em guisa de uma digressão, sobre esse sujeito
que, na incapacidade de se auto determinar no espaço urbano, vai ao desencontro
de sua sensibilidade, um contraponto: como um beatnik que, no livre caminhar, procura expandir seu potencial e se
tornar um agente lírico em meio ao mundo
capitalista. Refiro-me, com “jeitinho brasileiro”, à uma música de Cartola,
“Preciso me Encontrar”. O eu-lírico, no caso, desolado, sente necessidade de
adotar uma postura errante que lhe permita fruir livremente do ambiente urbano:
“Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros
cantar. Eu quero nascer, quero viver.” O encontro de si mesmo é a expansão de
sua sensibilidade em direção a uma experiência estética da realidad, seu ambiente
natal: um renascimento.
[14] Jameson, 2006 – p. 35
[18] Lasch, 1983 – p. 23
[20] Arantes, 2004 – p. 238
[21] Jameson, 2001, p. 91
[22] Fabbrini, 2006 – p. 16